Ao contrário de Machado de Assis, Guimarães Rosa pertence ao século XX e ganhou status de grande autor, na década de 40 quando publica seu primeiro livro: Sagarana. A partir daí, Rosa inicia a sua trajetória pela Literatura e, claro, pelo Grande Sertão: Veredas (1956). E é no sertão mineiro que constrói seu universo literário, e nos encanta, narrando em contos e no seu único romance, a luta da palavra, a magia da palavra, o poder da palavra! E quando se fala de palavra e de Rosa, surge uma das maiores dificuldades de se lê-lo: os neologismos, as palavras arcaicas, que renascem para comporem suas personagens e as suas histórias. Apesar disso, é possível ler Guimarães Rosa, pois a recompensa é extraordinária e altura do desafio que é percorrer seu sertão!
Comecemos então, por um dos contos que mais gosto e que me serviu de porta para adentrar no universo de Rosa: “Famigerado”. Primeiro texto do livro Primeiras estórias, narrado em primeira pessoa, por um médico da região do são-francisco, este nos conta que “parou-me à porta a tropel”, um grupo de jagunços, liderados por Damázio, temido e conhecido jagunço. Sua missão que não era doença ou “nem vindo à receita ou consulta” era mais simples e como diz o narrador “quem pode esperar coisa tão sem pés nem cabeça?”, ou seja, era saber o significado de uma palavra.
“Vosmecê agora me faça a boa obra de querer me ensinar o que é mesmo que é: fasmisgerado... faz-me-gerado... falmisgeraldo... familhasgerado...?
Disse, de golpe, trazia entre dentes aquela frase. Soara com riso seco. Mas, o gesto, que se seguiu, imperava-se de toda a rudez primitiva, de sua presença dilatada. Detinha minha resposta, não queria que eu a desse de imediato. E já aí outro susto vertiginoso suspendia-me: alguém podia ter feito intriga, invencionice de que aqui ele se famanasse, vindo para exigir-me, rosto a rosto, o fatal, a vexatória satisfação?
“Saiba vosmecê que saí ind’hoje da Serra, que vim, sem parar, essas seis léguas, expresso direito pro mor de lhe preguntar a pregunta, pelo claro...” (Textos Selecionados, pág. 103-4).
No trecho acima, sintetiza perfeitamente o que disse no inicio desta postagem: o poder da palavra! E o seu mistério! Determinado a saber o significado de uma palavra jamais ouvida, o jagunço Damázio percorre dias para saber do que fora chamado pelo “moço do Governo, rapaz meio estrondoso...”. Mas o que significa, afinal, famigerado?
Segundo o narrador, tal palavra é “célebre”, “notório”, “notável”. Porém, para aquele sertanejo o mistério continua. “Pois... e o que é que é, em fala de pobre, linguagem de em dia-de-semana?” (Idem, pág. 105). Nessa frase maravilhosa, Guimarães Rosa resumi a idéia da Literatura, ao meu ver: a palavra pode e transforma o simples, o comum, o dia-de-semana em Arte, tornando-se eterna e imortal. E mais do que isso, Rosa ao brincar com o som de famigerado, ou ao criar “Cabismeditado” – neologismo bárbaro –, o autor mostra que a palavra escrita é sua matéria prima!
E realmente ela é a sua, como a minha também. Porém, minha consciência sobre isso, só se revelou após a leitura deste conto. Além do mais, foi a partir deste texto que percebi o quanto Guimarães Rosa é grandioso, maravilhoso, prazeroso! E mesmo que o percurso por seu sertão seja duro, difícil, ele vale todas as idas aos dicionários e enciclopédias, pois o cenário e as histórias que Rosa cria só neologismos para mostrar!